O Conto da Aia e o silenciamento feminino: por que ainda é tão atual?
Quando O Conto da Aia foi lançado por Margaret Atwood em 1985, poucos imaginavam que a obra, situada em um futuro distópico e extremamente opressor para as mulheres, continuaria tão relevante quase quatro décadas depois.
Mas o tempo passou, e em vez de se tornar obsoleto, o livro se transformou em símbolo. Um alerta. Um espelho.
E talvez o que mais assuste seja isso: como ele ainda conversa com a nossa realidade de forma tão direta, especialmente sobre um tema que atravessa a vida de tantas mulheres: o silenciamento.
Neste artigo, vamos falar sobre como O Conto da Aia não é apenas uma ficção sombria, mas uma metáfora dolorosa para o que muitas de nós ainda vivem: a perda da voz, da autonomia e da narrativa própria.
A distopia de Gilead: um retrato exagerado ou um alerta velado?
A história se passa na República de Gilead, uma teocracia totalitária onde as mulheres são divididas em castas e têm suas funções reduzidas à reprodução, ao serviço doméstico ou ao controle social. As “aias”, mulheres férteis, são forçadas a engravidar para casais da elite que não podem ter filhos.
É brutal. É revoltante. E é profundamente simbólico.
Porque, mesmo sendo ficção, Gilead não está tão longe da realidade de muitas mulheres ao redor do mundo, e, em muitos aspectos, também da nossa experiência cotidiana, emocional ou profissional.
O silêncio como forma de controle
No universo de O Conto da Aia, o silêncio feminino é imposto como virtude. As aias não podem ler, escrever, decidir. Nem mesmo seus nomes lhes pertencem. A protagonista, Offred, é chamada assim porque pertence ao “Comandante Fred” mas seu nome real nunca é revelado.
Essa anulação da identidade e da palavra é uma das formas mais perversas de opressão. E aqui fora, no nosso mundo, isso acontece de maneiras mais sutis, mas igualmente destrutivas:
- Quando uma mulher é interrompida em reuniões.
- Quando sua fala é desacreditada ou ridicularizada.
- Quando ela aprende a se calar para manter a paz.
- Quando ela internaliza que “falar demais” é feio ou perigoso.
A culpa e o corpo: uma herança ainda presente
Em Gilead, o corpo da mulher é um bem do Estado. Ele deve ser fértil, obediente, casto. A sexualidade é punida. O prazer é apagado. A maternidade é uma obrigação, não uma escolha.
E se isso soa extremo, basta olhar ao redor: ainda hoje, mulheres enfrentam julgamentos por:
- Como se vestem
- Como (e se) escolhem ser mães
- Se dizem “não”
- Se desejam
Margaret Atwood já disse que tudo o que escreveu em O Conto da Aia já aconteceu em algum lugar do mundo. Isso não é ficção baseada no absurdo, é ficção baseada na história.
A modernidade do silenciamento: redes, trabalho, relações
Se antes o silenciamento vinha de fora, agora ele é também interno. Ele se esconde em formas sofisticadas:
- Na autocensura antes de postar uma opinião nas redes
- Na dúvida antes de cobrar o que é justo
- No medo de parecer “difícil”, “intensa”, “complicada”
- Na exaustão de explicar coisas óbvias
A mulher contemporânea ainda lida com camadas invisíveis de controle. E muitas vezes, nem percebe que está vivendo sua própria versão de Gilead, só que com maquiagem e Wi-Fi.
“Nolite te bastardes carborundorum”: a frase que se tornou símbolo
Uma das frases mais emblemáticas da obra é escrita por uma aia anterior na parede do quarto onde Offred vive:
Nolite te bastardes carborundorum
“Não deixe os bastardos te derrubarem.”
Essa frase, que se espalhou como símbolo de resistência, não é apenas uma revolta contra o sistema. É um chamado íntimo para não perder a própria luz, mesmo em ambientes que tentam apagar você todos os dias.
Por que essa história ainda nos atinge tanto?
Porque ela toca em um medo coletivo que atravessa gerações:
O medo de não sermos ouvidas.
De perdermos o direito sobre nosso próprio corpo.
De sermos tratadas como instrumentos, e não como pessoas.
E mesmo que você tenha liberdade, voz e espaço hoje, O Conto da Aia serve como lembrete de que esses direitos foram conquistados, e ainda podem ser ameaçados.
Quando a leitura se transforma em reflexão
Ler O Conto da Aia é como olhar para um espelho distorcido que mostra o exagero para revelar a verdade.
A pergunta que a obra nos devolve é: “Em que partes da minha vida eu ainda estou sendo calada?”
E talvez mais importante: “Em que momentos eu mesma silenciei minha voz para caber em lugares que me diminuem?”
A importância de recuperar a própria narrativa
Recuperar a voz não significa gritar. Significa poder dizer o que pensa, sente e deseja, com segurança e respeito.
E esse é um processo profundamente espiritual para muitas mulheres:
- Resgatar a menina que foi calada
- Reeducar a mulher que aprendeu a se diminuir
- Redescobrir o valor de uma palavra dita com verdade
O corpo fala e quer ser ouvido
A opressão nem sempre vem com gritos.
Às vezes, ela aparece como:
- Uma dor de garganta constante
- Uma insônia que não passa
- Uma ansiedade que aperta o peito
- Uma culpa que você não sabe de onde vem
São formas do corpo dizer: “Tem algo aqui dentro que ainda não foi dito.”
E reconhecer isso é o primeiro passo para romper o ciclo.
O Conto da Aia como ferramenta de autoconhecimento
Você pode usar a leitura da obra (ou a série) como um ritual de reflexão pessoal:
🌹 Sugestão de prática:
1. Leia (ou releia) a história com atenção ao que te incomoda
2. Escreva:
- Onde você se sente como uma aia na sua vida?
- O que te cala?
- O que você gostaria de dizer se não houvesse medo?
3. Crie um pequeno gesto simbólico de liberdade:
- Uma carta que você escreve (e talvez não envie)
- Uma decisão que estava adiando
- Uma conversa honesta com você mesma
Para quem a voz foi devolvida, nasce a missão de usá-la
Se você já recuperou sua voz, ou está nesse caminho, lembre-se: Seu exemplo pode acender a faísca de outras mulheres.
Falar é um ato de coragem. E também de cura coletiva.
Gilead pode ser ficção, mas o silenciamento é real
O Conto da Aia é uma história sobre extremos. Mas os extremos existem para que possamos reconhecer os sutis.
Talvez você nunca tenha vivido um regime autoritário.
Mas talvez já tenha sido ensinada a se calar para não parecer “chata”.
Ou a dizer sim quando queria dizer não.
Ou a sorrir quando sentia raiva.
E é por isso que essa obra ainda é tão atual: Porque ela nos lembra que o silêncio imposto, internalizado ou consentido não é natural, é aprendido. E que a liberdade de uma mulher começa quando ela se reconecta com a sua verdade, com a sua fala, com a sua presença.
💬 Você já sentiu que teve sua voz silenciada em algum momento da vida?
Compartilhe nos comentários sua experiência ou como O Conto da Aia te tocou. Vamos fazer desse espaço um lugar onde as vozes femininas são ouvidas, sentidas e respeitadas.